Origem do artigo :
Digestivo Cultural
Luis Eduardo Matta
Não sei se fiquei mais atento ou se, de fato, há uma preocupação crescente com o assunto, mas o fato é que, de uns tempos para cá, venho notando que são raras, aliás raríssimas, as semanas em que o tema “falta de leitores no Brasil” não é abordado em algum jornal, revista, programa de TV, site ou blog. Em geral, na forma de lamentos fatalistas, como se o destino houvesse condenado irremediavelmente o povo brasileiro ao semi-analfabetismo e à ignorância, decretando-lhe o desterro do conhecimento e da familiaridade com as letras. Os escritores, acomodados a essa idéia, solidarizam-se entre si, enxergando nesta escassez de leitores uma espécie de mal comum que afeta a todos de maneira equânime. Tanto assim que, quando um escritor, por uma razão qualquer, consegue atingir um número expressivo de leitores e destacar-se com vendas expressivas de seus livros, ele torna-se, imediatamente, persona non grata entre muitos de seus colegas, como se fosse um traidor da classe, que prostituiu sua arte, vendeu-a ao demônio chamado “mercado”, em troca de fama e dinheiro. Não se iludam: Paulo Coelho, só para citar o exemplo mais famoso, não vem sendo severamente criticado ao longo dos anos apenas porque escreve dessa ou daquela maneira, mas, principalmente, porque faz um sucesso estrondoso. Não estou fazendo aqui um juízo da obra deste autor, ainda porque muitos que a atacam nunca leram uma linha sequer do que ele escreveu. Se ele escreve bem ou mal, parece ser um detalhe secundário aos olhos dos que o criticam. O seu grande pecado é a fama e a fortuna que auferiu e isso, num país como o Brasil, que se reconhece no fracasso, é uma heresia absolutamente imperdoável.
Em artigos que escrevi e em entrevistas que concedi, venho reafirmando que a leitura no Brasil tem dois fortes inimigos, que impedem a sua difusão entre a grande massa do povo: o primeiro deles é o ensino de literatura nas escolas, bastante problemático a meu ver e que precisa ser reformulado a fim de despertar nos alunos o gosto pela leitura. Nas escolas brasileiras que contam com aulas de literatura – pois muitas, como se sabe, não as possuem –, o ato de ler não é adequadamente ensinado, não há um real estímulo à leitura e, sim, uma abordagem excessivamente didática da literatura, com os alunos sendo obrigados a ler livros às pressas para responder a um teste de interpretação dali a algumas semanas. A partir de uma determinada faixa etária, que costuma variar dos 13 aos 15 anos, a situação piora, pois os alunos, acostumados com a linguagem contemporânea e direta da nossa literatura juvenil, são diretamente trasladados para os grandes nomes da literatura nacional. Neste momento, o gosto pela leitura, em geral, recebe o seu tiro de misericórdia. Não se trata, naturalmente, de contestar o valor e a grandeza desses autores – dentre os quais figuram nomes extraordinários do vulto de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. E, sim, de avaliar se o conturbado período da adolescência, em que todos se encontram às voltas com dezenas de conflitos interiores e estão no auge da efervescência hormonal, é o mais adequado para introduzir uma pessoa no mundo maravilhoso da melhor literatura. Sobretudo, quando seguida de um teste de aferição de leitura.
Tomemos como exemplo José de Alencar, que é um escritor de que gosto muito. O que acontece quando um adolescente médio, sem uma vocação para a seara intelectual, é forçado, em sala de aula, a ler um de seus livros para responder a um teste dali a, digamos, um mês e meio? Eu respondo: de um modo geral, este aluno irá comprar ou pedir emprestado o livro imediatamente, lerá a primeira página, a achará complicadíssima e deixará o livro de lado, por quanto tempo lhe for possível. Quando estiver a poucos dias do teste, vendo que não pode mais postergar a leitura por conta da iminência do compromisso, ele irá, contrariadíssimo, renunciar aos seus prazeres cotidianos para, enfim, voltar a pegar no livro. A leitura será penosa e pesada, não somente por ser obrigatória, mas, sobretudo, por se tratar de um autor do século XIX. Ele precisará recorrer ao auxílio de um dicionário para compreender muitos dos termos contidos no livro, que estão em desuso há décadas. Com tantos obstáculos, este aluno dificilmente conseguirá assimilar e compreender a história em sua plenitude e, em muitos casos – se tiver condições para tanto – irá recorrer aos inúmeros resumos de livros que existem aos montes na internet. A maioria, aliás, de uma qualidade sofrível. Pois bem: o aluno fará o teste e, uma vez cumprida esta missão extenuante e desgastante, ele suspirará de alívio e passará, então, às atividades de lazer pelas quais nutre genuíno gosto:videogame, partidas de futebol, televisão, salas de bate-papo na internet, sites eróticos, filmes no cinema ou em DVD, idas a boates e barzinhos, etc.
O que eu quero dizer com isso? É simples: a leitura é uma atividade extremamente prazerosa, mas os jovens não são estimulados a encará-la dessa forma. A leitura, a partir da pré-adolescência, é ensinada como uma obrigação chata, maçante, tediosa e não como uma forma de lazer, que pode ser tão ou mais estimulante do que um jogo de videogame ou mesmo uma ida ao cinema. É preciso que se fortaleça a idéia de que a leitura somente se incorpora aos nossos cotidianos e passa a fazer parte indissociável das nossas vidas quando é vista como uma atividade lúdica, simples, agradável, estimulante. As telenovelas não fazem o sucesso que fazem entre milhões de brasileiros porque as pessoas são obrigadas a assisti-las e, sim, porque as novelas lhes proporcionam prazer e entretenimento. A mesma filosofia se aplica à literatura. Pergunte a qualquer pessoa comum que leia regularmente e ela lhe dirá que lê porque gosta de ler, porque tem prazer em ler. Então, esse é o caminho: repensar o ensino de literatura com base nessa filosofia. Acabando, por exemplo, com a noção de que os jovens “têm que” ler os clássicos desde cedo. Não adianta repetir o mantra de que “ler é importante”, “ler é fundamental”, quando na prática, a mensagem que se passa é outra: que “ler é chato”, que ler, para usar uma expressão muito comum entre os jovens, “é um saco”.
A minha querida amiga Ruth Rocha, consagrada escritora de livros infantis e infanto-juvenis, pessoa inteligentíssima com quem já tive o prazer de dividir a mesa inúmeras vezes em almoços e jantares memoráveis, costuma dizer acertadamente que existem três categorias de crianças/adolescentes: os que se tornarão leitores naturalmente, sem que seja necessário nenhum esforço para levá-los a isso; os que não se tornarão leitores de jeito nenhum, por mais atraente que a leitura se apresente a eles; e aqueles que se tornarão leitores se forem adequadamente estimulados. Estes constituem, a juízo de Ruth Rocha e a meu também, o contingente majoritário. Falo por experiência própria, porque faço parte da terceira categoria. Eu não tinha uma aptidão inata para a leitura, mas contei com excelentes e sensíveis professoras, que souberam me apresentar no momento certo, aos livros certos. E, a partir dali, segui sozinho.
É nesse processo que a literatura de entretenimento, tão escassa no Brasil e, sobre a qual, tenho falado vez por outra, cumpre um papel importante. E é aí que entra o segundo dos inimigos da leitura que mencionei mais acima: a excessiva deferência, com evidentes pitadas de arrogância, com a qual o objeto livro e a leitura são tratados por escritores, acadêmicos e intelectuais no Brasil. As mesmas pessoas que, pela sua posição privilegiada no topo da cadeia livreira, deveriam ser os agentes difusores da leitura entre o povo brasileiro, incumbem-se de colocá-lo no alto de um pedestal inacessível. Existe no Brasil uma entronização do livro, como se este fosse um objeto sacrossanto, um verdadeiro objeto de culto. Esses intelectuais estufam o peito e empinam o nariz para discorrer sobre os seus livros e autores de predileção, descrevendo-os com a pompa de quem narra episódios épicos e enchem a boca para desqualificar, gratuitamente e sem um critério lógico, uma miríade de livros que consideram “menores”, estabelecendo, inclusive, uma classificação bastante curiosa do que seja um “leitor verdadeiro”. A seu juízo, um leitor não é simplesmente uma pessoa que leia livros, e, sim, uma pessoa que leia os livros que eles consideram importantes, canônicos, geniais, as obras-primas escritas pelos grandes mestres. Mestres, em sua maioria, já mortos pois, dessa forma, é possível a qualquer um apresentar-se como especialista em seus trabalhos e, assim, apropriar-se da sua notoriedade sem maiores riscos, uma vez que o escritor não está mais vivo para apresentar contestações.
Fico perplexo e, muitas vezes até, horrorizado quando, ao visitar sites eblogs literários respeitáveis, deparo com discussões acaloradas e até mesmo raivosas sobre excelência literária, pessoas se digladiando e jurando inimizade eterna por conta de discordâncias absolutamente naturais e, eu diria até, banais, acerca de determinado escritor ou livro, como se do resultado desse embate dependesse sua própria reputação. Mas isso tem uma razão: pessoas de pensamento medíocre, que gostam de se apresentar como letradas e intelectualmente privilegiadas, valem-se de livros de grande reputação para se promover, num artifício similar ao que uma outra categoria ainda mais vazia de gente utiliza, exibindo suas roupas de grife. Enquanto estas últimas adoram anunciar que vestem roupas e assessórios Armani, Dior, Balenciaga ou Chanel, as primeiras não se cansam de anunciar serem amantes da literatura de Borges, Lobo Antunes, Clarice ou James Joyce, quando, na verdade, o que elas querem com isso é dizer: “Olhem para mim. Eu sou um intelectual. Eu tenho um soberbo gosto estético quando o assunto é literatura. Eu sou inteligente. Eu sou genial”. Porque quem gosta, realmente, de literatura e, sobretudo, da grande literatura, não se rebaixa ao ponto de se embrenhar em rancorosas trocas de desaforos e exibições de pernosticismos que, de intelectuais, nada têm. Encara-a com naturalidade e num saboroso silêncio.
Então, temos, no Brasil, hoje, de um lado, a maioria do povo, alijada do mundo dos livros pelas razões já enumeradas. Do outro, uma pequena elite leitora, fechada em suas próprias convicções e contaminadas por toda sorte de preconceitos. Talvez seja no equilíbrio entre esses dois mundos que esteja a saída para fazer da população brasileira, uma população leitora. Isso não é utopia. Os brasileiros não são pessoas com uma deficiência genética que as impeça de imergir no mundo dos livros. Mas essa imersão deve acontecer de forma espontânea, sem cerimônia, com a leitura encarada com naturalidade, como uma atividade trivial de prazer cotidiano e não como um ato sacrossanto de ode à grandeza e à excelência intelectual. Ninguém deve se sentir obrigado a ler os clássicos ou a melhor literatura sempre. A leitura por si só, quando regular, já traz ganhos imensuráveis às pessoas: desde aumentar sensivelmente a capacidade de concentração de cada um, até a familiaridade com o texto escrito. Não é preciso ler Machado de Assis todos os dias para se chegar a tanto. Nesse ponto, eu discordo do crítico norte-americano Harold Bloom quando ele condena a série Harry Potter, alegando que, no futuro, os seus leitores se tornarão, no máximo, leitores de Stephen King e similares. Que sejam. Que venham os leitores de Stephen King. Quem dera o povão brasileiro, ainda hoje atolado num semi-analfabetismo quase patológico, fosse leitor em peso de autores como Stephen King. A afirmação de Harold Bloom é temerária, sobretudo pela perigosa generalização que ela contém. Como pode Bloom fazer tal diagnóstico com tamanha segurança? Ele, por acaso, conhece a fundo a intimidade de cada um dos milhões de leitores do Harry Potter mundo afora? Ele, por acaso, é capaz de adivinhar o itinerário que cada uma dessas pessoas cumprirá pelo universo dos livros? Pois, para encerrar esse artigo, vou relatar uma experiência minha a respeito: lá pelos idos de 2000/2001/2002, conheci alguns adolescentes de 13/14 anos que devoravam todos os livros protagonizados por Harry Potter. Recentemente, nos últimos meses, tive a oportunidade de reencontrá-los, já adultos com seus 20/21 anos aproximadamente. Pois bem: dois estão cursando faculdades de letras, os demais já devoraram boa parte da obra de Machado de Assis e Dostoievski e um é fã ardoroso de Thomas Mann. Todos me disseram que se apaixonaram pela leitura graças à série Harry Potter e que foi o bruxinho de Hogwarts que despertou neles o hábito e o gosto pela leitura. Posso estar equivocado, mas creio que esses jovens têm mais a nos ensinar sobre difusão da leitura no Brasil, oferecendo-nos caminhos viáveis para vencer esse desafio histórico, do que muitos dos venerandos teóricos que, encastelados nas suas convicções inabaláveis e encerrados em sua excelsa e hermética sabedoria, parecem totalmente distanciados da realidade contemporânea.
Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 15/5/2007
Como gosto de ler, para mim não foi difícil incentivar a leitura junto ao meu filho.Quando bebê comprava livros adequados a idade ( lembro-me daqueles que eram para serem lidos durante o banho, ele adorava ! ) e lia sempre à noite para dormir,.Ao ser alfabetizado, treinávamos revezando na leitura dos livros, uma noite eu lia um trecho , outro noite ele lia.Com o surgimento da saga Harry Potter ele se empolgou muito com a leitura.Lemos juntos a Pedra Filosofal !
Hoje, com 17 anos, ele adora ler e sempre lembramos com carinho daquelas noites que líamos juntos antes de dormir.
Tem sua própria estante com todos os seus livros e adora ganhar livros de presente.
Esse trabalho de incentivo ao meu ver é como uma construção de uma parede a longo prazo, cada dia você coloca um tijolinho para dali a alguns anos, ter a parede completa.
Começar desde pequeno é muito bom, pois a criança acaba incorporando aquele ato de ler como uma coisa natural, parte integrante dele mesmo.
Credits Pawel Bialas
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GREUZE (1725-1805) - A Father Reading the Bible to His Children 1755 |
Pesquisando sobre a História da Leitura deparei-me com uma série de artigos do colunista Marcelo Spalding no Digestivo Cultural que achei simplesmente fantástica!
Origem : Digestivo Cultural
História da leitura (I): as tábuas da lei e o rolo
Poucas gerações testemunharam tantas mudanças tecnológicas como a nossa, esta que agora ocupa os bancos universitários, as redações de jornais e revistas, as diretorias das grandes empresas, esta geração que cresceu lendo livros impressos e agora resiste à ideia de novos suportes para a leitura.
Tal aceleração por vezes nos faz esquecer que inovações técnicas, ainda que num ritmo mais lento, ocorrem desde que o homem é homem e foram fundamentais para que um ser frágil como o nosso pudesse sobreviver num ambiente hostil e perigoso como a Terra. Leroi-Gourhan chega a afirmar que, pela liberação da mão e pela exteriorização do corpo humano, "a aparição do homem é a aparição da técnica; é a ferramenta, isto é, a tekhnè, que inventa o homem, e não o homem que inventa a técnica".
Transpondo essa afirmação para a história da leitura, poderíamos dizer que são as técnicas de reprodução da escrita que inventam o leitor, e não o leitor que inventa tais técnicas, o que significa que os suportes digitais de leitura não são feitos para a geração acostumada com os códices impressos, e sim irá engendrar um novo leitor familiarizado com as novas tecnologias. Tal transformação, ainda que violenta, não é exatamente inédita na longa história da leitura.
Robert Darnton, em A questão dos livros, identifica quatro mudanças fundamentais na tecnologia da informação desde que os humanos aprenderam a falar: a invenção da escrita, a substituição dos rolos de pergaminho pelo códice, a invenção da imprensa com tipos móveis e, finalmente, a comunicação eletrônica.
A invenção da escrita, vale lembrar, é tida pelos historiadores como marco de transição entre a Pré-História e a Idade Antiga, ou Antiguidade, o que revela a absoluta importância da escrita para o desenvolvimento da nossa civilização. Não há consenso entre os historiadores sobre a data ou o local do surgimento da escrita, o mais provável é que sua invenção tenha se dado em vários lugares do mundo de forma independente a partir do momento em que as transações e a administração dos povos se torna mais complexa, além das possibilidades da memória.
Um mito narrado por Platão mostra o quão difícil foi essa substituição da memória pela escrita: Thoth, um deus egípcio criador da escrita, dos números, do cálculo, da geometria, da astronomia e dos jogos de damas e dados, leva seus inventos a Tamuz, rei de Tebas, esperando que eles possam ser ensinados aos egípcios; a escrita, segundo seu inventor, tornaria os homens mais sábios, fortalecendo-lhes a memória. Comenta Thoth: "com a escrita inventei a grande auxiliar para a memória e a sabedoria", a que responde Tamuz:
Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal cousa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência serão desagradáveis companheitos, tornar-se-ao sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.
A escrita, naturalmente, com o tempo mostrou-se fundamental não apenas como auxiliar para a memória, mas também para materializar um conteúdo que não pode dispersar-se, como o conhecido Código de Hamurábi, datado do século XVIII a.C.. O Código de Hamurábi é um monumento monolítico talhado em rocha de diorito sobre o qual se dispõem 46 colunas de escrita cuneiforme acádica. Seu texto expõe as leis e punições caso não sejam respeitadas, legislando sobre matérias muito variadas. Embora houvesse outros códigos entre os sumérios, que viveram entre 4000 a.C. a 1900 a.C. na Mesopotâmia, o Código de Hamurábi foi o que chegou até os dias atuais de forma mais completa e simboliza bem, num tempo de bits efêmeros, a importância da palavra talhada na solidez de uma rocha milenar.
Pedra com Código de Hamurábi e detalhe do Código
Da mesma época são os Dez Mandamentos entregues a Moisés no Monte Sinai, uma das mais contundentes passagens bíblicas: "Então disse o SENHOR a Moisés: Sobe a mim ao monte, e fica lá; e dar-te-ei as tábuas de pedra e a lei, e os mandamentos que tenho escrito, para os ensinar".
Apesar da importância desses códigos escritos em rochas sólidas, a escrita não teria se tornado marco zero da história da humanidade não houvesse um suporte capaz de facilitar seu manuseio e transporte, o que tornou a escrita um código com fins muito mais amplos do que, por exemplo, as pinturas ruprestes feitas nas cavernas pelos homens ditos pré-históricos.
O papiro, desenvolvido no Egito por volta de 2500 a.C., é hoje considerado o primeiro suporte para a escrita. Para confeccionar o papiro, era cortado o miolo esbranquiçado e poroso do talo em finas lâminas. Depois de secas, estas lâminas eram mergulhadas em água com vinagre para ali permanecerem por seis dias, com propósito de eliminar o açúcar. Novamente secas, as lâminas eram dispostas em fileiras horizontais e verticais, sobrepostas umas às outras. A seguir as lâminas eram colocadas entre dois pedaços de tecido de algodão, sendo então mantidas prensadas por mais seis dias. Com o peso da prensa, as finas lâminas se misturavam homogeneamente para formar o papel amarelado, pronto para ser usado. O papiro pronto era, então, enrolado a uma vareta de madeira ou marfim para criar o rolo que seria usado na escrita.
Embora a palavra grega biblos signifique hoje tanto rolo quanto livro, a leitura nesse rolo é muito diferente da leitura de um livro como hoje o conhecemos. O rolo é uma longa faixa de papiro - ou, mais tarde, de pergaminho - que o leitor deve segurar com as duas mãos para poder desenrolá-la, fazendo aparecer trechos distribuídos em colunas. Não é possível, por exemplo, que um autor escreva ao mesmo tempo que lê.
Exemplo de rolo utilizado na Antiguidade
Os rolos, criados posteriormente à invenção da escrita e, naturalmente, por causa dela, foram fundamentais para o que hoje chamamos de literatura, pois os textos gregos da época de Sócrates, Platão e Aristóteles, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes se tornaram a base da cultura Ocidental e puderam sem preservados em locais específicos para este fim, como a lendária Biblioteca de Alexandria.
A Biblioteca de Alexandria, uma das maiores bibliotecas do mundo antigo, foi fundada no início do século III a.C. por Alexandre, o Grande, que teve como tutor ninguém menos que Aristóteles, e existiu até a Idade Média, quando foi totalmente (ou quase) destruída por um incêndio casual. Calcula-se que havia mais de quinhentos mil rolos na Biblioteca de Alexandria, mas como uma obra podia ocupar, sozinha, dez, vinte, até trinta rolos, havia um número de obras muito menos significativo. Segundo Chartier, só o catálogo da biblioteca era constituído de cento e vinte rolos.
À medida que a escrita foi ganhando em importância e valor, outro suporte, que embora mais caro era menos quebradiço e resistia melhor ao tempo, passou a ser muito utilizado nas confecções dos rolos: o pergaminho. O pergaminho é um material feito da pele de um animal (geralmente cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha) e especialmente fabricado para se escrever sobre ele. A origem do seu nome é a cidade de Pérgamo, onde havia uma produção vasta e de grande qualidade deste material, e há controvérsia se sua origem remonta mesmo a esta cidade. De qualquer forma, na Biblioteca de Pérgamo, contemporânea a de Alexandria, os rolos em papiro eram copiados em pergaminho, e este material foi fundamental para a preservação dos textos da Antiguidade.
Carrière e Eco, em Não contem com o fim do livro, contam que Régis Debray, filósofo francês, perguntou-se o que teria acontecido se os romanos e gregos tivessem sido vegetarianos: "não teríamos nenhum dos livros que a Antiguidade nos legou em pergaminho, isto é, numa pele de animal curtida e resistente" (2010, p. 104).
A segunda grande mudança tecnológica, a passagem do rolo para o códice, deu-se logo após o início da era cristã, durante o Império Romano. Mas este é o assunto da próxima coluna.
Marcelo Spalding
Porto Alegre, 25/2/2011
Fonte : Digestivo Cultural
História da leitura (II): o códice medieval
A segunda grande mudança tecnológica, a passagem do rolo para o códice, deu-se logo após o início da era cristã, durante o Império Romano. Nessa época, juristas decidiram manusear o pergaminho de forma diferente, dobrando-o em quatro ou em oito. Esse caderno era chamado de volumem, uma denominação usada ainda hoje. Costurando esses cadernos uns aos outros, eram construídos o que se chamava de códex (códice).
Tal inovação, afora ser crucial para a difusão do cristianismo, foi fundamental para a história da leitura, pois, como afirma Chartier, enquanto que os formatos de rolo encorajavam leituras sequenciais a expensas do movimento descontínuo para adiante e para trás em um dado texto, a estrutura paginada do códex promovia o desenvolvimento de novas práticas de leitura propriamente "livrescas", uma ruptura muito maior do que seria a invenção da imprensa por Gutenberg.
Códice Sinaítico, um dos mais antigos dos manuscritos bíblicos existentes,
datado do século IV
É nesse período que se difunde a prática da leitura silenciosa, tendência que se consolida exatamente por causa da mudança técnica do rolo para o códice. Umberto Eco simboliza essa passagem da leitura em voz alta para a leitura silenciosa no espanto de Agostinho: "a leitura, até santo Ambrósio, era feita em voz alta. Foi ele o primeiro a começar a ler sem pronunciar as palavras, o que mergulhara santo Agostinho em abismos de perplexidade".
A propósito da leitura silenciosa, os primeiros textos que impunham silêncio nas bibliotecas são apenas dos séculos XIII e XIV, é apenas nesse momento que, entre os leitores, começam a ser numerosos aqueles que podem ler sem murmurar, sem 'ruminar', sem ler em voz alta para eles mesmos a fim de compreender o texto.
Além dessa importante mudança na forma de ler, o códice seria também responsável por grandes mudanças na forma de escrever, como nos conta Darnton:
"A página surgiu como unidade de percepção e os leitores se tornaram capazes de folhear um texto claramente articulado, que logo passou a incluir palavras diferenciadas (isto é, palavras separadas por espaços), parágrafos e capítulos, além de sumários, índices e outros auxílios à leitura."
Se voltarmos às imagens do Código de Hamurábi, do rolo e do códice medievais, realmente não encontraremos espaço entre as palavras, tampouco a divisão em parágrafos, uma organização para o texto que hoje nos parece tão natural mas que está ligada ao novo suporte da escrita e à superação de suas limitações. Não que um suporte mais antigo seja mais limitado que o outro, mais moderno, em geral o que ocorre é um ganho em alguns aspectos e uma perda em outros.
O códice medieval, nesse sentido, era uma página elaborada manualmente por um copista num processo muito mais demorado porém artesanal, com ilustrações, cores, arabescos e, por vezes, até comentários às margens que faziam de cada exemplar algo único. Esta talvez seja a grande diferença do códice medieval para o livro impresso que viria a seguir.
Umberto Eco resgata o já lendário ambiente de um scriptorium de copistas em O Nome da Rosa, representando monges de preferências e ideologias variadas criando seus códices com cuidado, dedicação e paixão:
"Aproximamo-nos daquela que fora o local de trabalho de Adelmo, onde estavam ainda as folhas de um saltério com ricas iluminuras. eram folia de vellum finíssimo ― rei dos pergaminhos ― e o último ainda estava preso à mesa. Apenas esfregado com pedra-pome e amaciado com gesso, fora lixado com a plaina e, dos minúsculos furos produzidos nas laterais com um estilete fino, tinham sido traçadas todas as linhas que deviam guiar a mão do artista. A primeira metade já estava coberta pela escritura e o monge tinha começado a esboçar as figuras nas margens. (...) As margens inteiras do livro estavam invadidas por minúsculas figuras que eram geradas,como por expansão natural, pelas volutas finais das letra espledidamente traçadas: sereias marinhas, cervos em fuga, quimeras, torsos humanos sem braços que se espalhavam como lombrigas pelo próprio corpo dos versículos. (...) Eu seguia aquelas páginas dividido entre a admiração muda e o riso, porque as figuras conduziam necessariamente à hilariedade, embora comentassem páginas santas."
É importante ressaltar que este cenário descrito por Eco já é do segundo milênio cristão (o romance se passa em 1327 d.C.), época em que outros importantes acontecimentos contribuiriam para o surgimento da prensa de Gutenberg e para a proliferação dos livros além dos muros eclesíasticos. Um deles é o surgimento das Universidades na Europa, uma instituição que de certa forma retomava o ideal das Academias gregas, em que atividades artísticas, literárias, científicas e físicas eram organizadas num único espaço, promovendo a universalidade do saber e a integração das áreas.
Na concepção moderna, a Universidad de Bolonia (Itália), de 1089, é considerada a primeira do mundo ocidental: "L'Istituzione che noi oggi chiamiamo Università inizia a configurarsi a Bologna alla fine del secolo XI quando maestri di grammatica, di retorica e di logica iniziano ad applicarsi al diritto". Logo a seguir surgiram a Universidade de Oxford (Inglaterra), em 1096, a Universidad de París (França), em 1150, a Universidade de Palência (Espanha), em 1208, precursora de la Universidad de Valladolid, a Universidade de Coimbra (Portugal), em 1290, entre outras.
Este aumento pela demanda de suportes para a escrita fez com que se buscasse alternativas ao pergaminho, popularizando o uso do papel. O papel foi inventado pelo chinês Cai Lun em 105 a.C., que sugeriu a utilização de casca de amora, bambu e grama chinesa como matérias-primas. No século VII, esse conhecimento foi levado à Arábia por um monge budista e de lá para à Europa através dos mouros.
Na Itália, o papel era considerado um produto medíocre em comparação ao pergaminho, tanto que Frederico II, em 1221, teria proibido o uso em documentos públicos. O consumo, entretanto, só aumentava, e em 1268 foi criada a primeira fábrica de papel da Europa em Fabriano, uma pequena cidade entre Ancona e Perugia. O monopólio comercial da fabricação italiana durou até o século XIV, quando a França, que o produzia utilizando linha desde o século XII, a partir da popularização do uso de camisas e das consequentes sobras de tecido e camisas velhas pôde passar à fabricação de papel a preços econômicos, o que seria fundamental para a invenção da impressão por tipos móveis de Gutenberg, na década de 1450.
Marcelo Spalding
Porto Alegre, 18/3/2011
Fonte : Digestivo Cultural
História da leitura (III): a imprensa de Gutenberg
Johannes Gutenberg, apesar de ser considerado o inventor da imprensa, não foi propriamente o primeiro a desenvolver tal tecnologia. Hoje se sabe que os chineses haviam desenvolvido tipos móveis por volta de 1045 e que os coreanos utilizavam caracteres metálicos em vez de blocos de madeira por volta de 1230. Ao contrário das inovações surgidas no Extremo Oriente, porém, foi a invenção de Gutenberg que se propagou de forma avassaladora.
A impressão por tipos móveis, ou imprensa, é um método industrial de reprodução de textos e imagens sobre papel ou materiais similares que consiste em aplicar uma tinta, geralmente oleosa, sobre peças metálicas chamadas de tipos, que a transferem para o papel por pressão. Ainda que fosse um método artesanal, pois era preciso compor com os tipos móveis palavra a palavra, página a página, mostrou-se muito veloz e prático para seu tempo, permitindo a produção de diversos exemplares com o mesmo molde.
O primeiro livro impresso por Gutenberg foi a Bíblia, conhecida hoje como a Bíblia de Gutenberg ou a "Bíblia de 42 linhas". A data mais provável para a publicação é entre 1452 e 1455 (não há nenhuma data no colofão, isto é, na nota informativa encontrada nas últimas páginas dos livros antigos). Uma cópia dessa Bíblia completa tem 1282 páginas e a maioria foi encadernada em pelo menos dois volumes. Acredita-se que tenham sido impressas 180 cópias, 45 em papiro e 135 em papel, e depois de impressas elas foram rubricadas e ilustradas à mão por especialistas, uma a uma, o que faz com que cada cópia seja única, um incunábulo de valor inestimável .
Há uma cópia da Bíblia de Gutenberg na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Além disso, a Universidade do Texas, em Austin, digitalizou cada página de sua cópia e disponibilizou as 1300 imagens digitais nosite http://www.hrc.utexas.edu/exhibitions/permanent/gutenberg/project/, acessível a qualquer internauta.
Em geral, se atribui à invenção da imprensa o marco de mais importante revolução nos suportes para a leitura, sendo que alguns chamam de livro apenas os códices impressos a partir dessa tecnologia. Roger Chartier, entretanto, em A aventura do livro, afirma que "a transformação não é tão absoluta como se diz: um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro pós-Gutenberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais ― as do códex". Evidentemente que, com a nova técnica, "o custo do livro diminui, através da distribuição das despesas pela totalidade da tiragem. (...) Analogamente, o tempo de reprodução do texto é reduzido graças ao trabalho da oficina tipográfica".
É interessante percebermos, nesse sentido, que por muito tempo o códice manual tenha coexistido com o códice impresso, o que não nos permitiria falar, realmente, em uma ruptura. Nas palavras de Chartier:
"Com Gutenberg, a prensa, os tipógrafos, a oficina, todo um mundo antigo teria desaparecido bruscamente. Na realidade, o escrito copiado à mão sobreviveu por muito tempo à invenção de Gutenberg, até o século XVIII, e mesmo o XIX. Para os textos proibidos, cuja existência devia permanecer secreta, a cópia manuscrita continuava sendo a regra. O dissidente do século XX que opta pelo samizdat, no interior do mundo soviético, em vez da impressão no estrangeiro, perpetua essa forma de resistência. De modo geral, persistia uma forte suspeita diante do impresso, que supostamente romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores e compreenderia a correção dos textos, colocando-os em mãos "mecânicas" e nas práticas do comércio"
Mais do que uma revolução na forma de ler, a imprensa representou uma popularização jamais vista do livro. Foi apenas com a imprensa, por exemplo, que A Divina Comédia, de Dante Alighieri, escrita entre 1307 e 1321, tornou-se conhecida e forjou o idioma italiano.
Fora dos domínios da arte, porém, a nova técnica logo se mostrou uma ameaça ao domínio da Igreja Católica. Martinho Lutero, padre e professor de teologia alemão, em torno de 1500 d.C. começa a promover a tradução da Bíblia para outros idiomas que não o latim, e chega a dar Bíblia aos fiéis, provocando uma verdadeira convulsão na Igreja e iniciando a Reforma Protestante.
Como parte da reação da Igreja, é criado em 1559, no Concílio de Trento, o Index Librorum Prohibitorum, um catálogo de livros proibidos pela Igreja (tal catálogo foi atualizado regularmente até a trigésima-segunda edição, em 1948), evidenciando a importância que o livro já havia adquirido naquela sociedade menos de cem anos após a impressão da primeira Bíblia de Gutenberg.
Vale salientar que este tipo de catálogo é a primeira ocorrência sistemática e ordenada alfabeticamente de nomes de autores e livros, numa época anterior à valorização do trabalho do autor e muito anterior aos direitos autorais, o que significa que "antes de ser detentor de sua obra, o autor já encontra-se exposto ao perigo pela sua obra", lembra Chartier.
Uma imagem dessa época tornou-se emblemática na história dos livros e, infelizmente, é repetida até os dias de hoje: a fogueira de livros, onde não se queimam mais (apenas) pessoas, mas suas ideias, registros e representações. Miguel de Cervantes, no célebre Dom Quixote, de 1605, tematiza tanto a ânsia pela queima de livros que assola sua época como a leituromania que toma conta de parcela da população.
Lembremos, nesse sentido, as palavras do capítulo inicial de Dom Quixote:
"Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que pare ele não havia história mais certa no mundo."
A seguir, no sexto capítulo, é narrada a limpeza que o padre-cura, o barbeiro e a sobrinha de Quixote fizeram na sua biblioteca enquanto ele dormia, com diálogos interessantíssimos que evidenciam inclusive o desconhecimento e o caráter ocultista que o livro trazia para a parcela mais pobre da população, algo que em algum momento nossa geração também vivenciou em relação às tecnologias digitais.
"Pediu à sobrinha a chave do quarto em que estavam os livros ocasionadores do prejuízo; e ela a deu de muito boa vontade. Entraram todos e com eles a ama; e acharam mais de cem grossos e grandes volumes, bem encadernados, e outros pequenos. A ama, assim que deu com os olhos neles, saiu muito à pressa do aposento, e voltou logo com uma tigela de água benta e um hissope, e disse:
― Tome Vossa Mercê, senhor licenciado, regue esta casa toda com água benta, não ande por aí algum encantador, dos muitos que moram por estes livros, e nos encante a nós, em troca do que nós lhes queremos fazer a eles desterrando-os do mundo.
Riu-se da simplicidade da ama o licenciado, e disse para o barbeiro que lhe fosse dando os livros a um e um, para ver de que se tratavam, pois alguns poderia haver que não merecessem castigo de fogo.
― Nada, nada ― disse a sobrinha ―; não se deve perdoar a nenhum, todos concorreram para o mal. O melhor será atirá-los todos juntos pelas janelas do pátio, empilhá-los em meda, e pegar-lhes o fogo; e senão, carregaremos com eles para o quintal e ali se fará a fogueira, e o fumo não incomodará."
O célebre romance de Cervantes, considerado por muitos como o primeiro romance moderno da literatura, ainda revela em sua segunda parte, publicada em 1615, uma outra faceta da produção livresca desse período: a pirataria. Já no prólogo, Cervantes, dirigindo-se ao leitor, acusa a existência de continuações à revelia de sua criação, ainda que usem o nome de seu protagonista:
"(...) Mas como a virtude dá alguma luz de si, ainda que seja pelos inconvenientes e vestígios de estreiteza, vem a ser estimada pelos altos e nobres espíritos e, portanto, favorecida. E não lhes diga mais, eu quero dizer-te mais a ti, senão advertir-te que esta segunda parte deDom Quixote que te ofereço é cortada pelo mesmo oficial e no mesmo pano que a primeira, e que te dói nela Dom Quixote dilatado, e finalmente morto e sepultado, para que ninguém se atreva a levantar-lhe novos testemunhos, pois já bastam os passados, e basta também que um homem honrado desse notícia destas discretas loucuras, sem querer de novo entrar com elas; que a abundância das coisas, ainda que sejam boas, faz com que se não estimem, e a carestia ainda das más, alguma coisa se estima."
Nesse sentido é interessante lembrarmos que hoje, com a internet, fala-se muito do problema de confiabilidade sobre os textos, pois eles podem ser alterados facilmente por erro ou intenção de quem o publica, mudando inclusive o nome do autor. Esse problema, entretanto, não é novo, e na época do surgimento da imprensa foi extremamente grave.
Robert Darnton relata, por exemplo, diferenças importantes encontradas na obra de Shakespeare, com trechos distintos de uma edição para a outra: "qual escolher? Não podemos saber a intenção de Shakespeare, pois nenhum manuscrito de suas peças sobreviveu". Segundo o autor, a solução era identificar trechos deturpados nas primeiras versões impressas, e assim foi identificado determinado tipógrafo que "compôs outros nove quartos de peças shakespearianas ou pseudoshakespearianas, usando edições mais antigas como base. Ao encontrar uma frase que considerava deficiente, ele a 'melhorava'".
Não que esse tipo de problema não acontecesse no tempo dos escribas. Como lembra Chartier, "a mão do escriba pode falhar e acumular os erros". Na era do impresso, entretanto, "a ignorância dos tipógrafos ou dos revisores, como os maus modos dos editores", trazem riscos ainda maiores: "de modo geral, persistia uma forte suspeita diante do impresso, que supostamente romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores e compreenderia a correção dos textos, colocando-os em mãos 'mecânicas' e nas práticas do comércio".
De qualquer forma, com ou sem erros dos tipógrafos, o livro se consolida como um objeto importante para a sociedade moderna que se forma, com seus povos e línguas próprios, acumulação de riquezas estatais e particulares, lutas por espaços e exploração dos mares, perda da hegemonia católica, efervescência cultural renascentista, consolidação das Universidades e expansão da alfabetização. Mais do que registrar a cultura e as ideias de sua época, o livro impresso permite a propagação dessas ideias, e a quantidade de suas edições fez com que alguns exemplares se conservassem até os séculos seguintes, criando aos poucos um cânone fundamental para se pensar numa literatura ocidental.
Não por acaso, Harold Bloom, ao listar os cem maiores escritores de todos os tempos no seu polêmico Genius: a mosaic of one hundred exemplary creative minds, cita apenas onze autores anteriores à invenção da imprensa de Gutenberg ― incluindo Dante, Maomé, o apóstolo Paulo, Platão e Homero ― e oitenta e nove posteriores ao livro impresso. Poderíamos afirmar que foi o livro impresso que forjou a figura do escritor, e ainda precisariam mais alguns séculos para forjar também a profissão de escritor.
Chegamos, assim, no alvorecer da era das máquinas, símbolo central do período histórico que ficou conhecido como Revolução Industrial, tema de nossa próxima coluna.
Marcelo Spalding
Porto Alegre, 1/4/2011
Fonte : Digestivo Cultural
História da leitura (IV): a ascensão do romance
Chegamos no alvorecer da era das máquinas, símbolo central do período histórico que ficou conhecido como Revolução Industrial, fenômeno observado especialmente na Inglaterra no meio do século XVIII, com o surgimento da indústria têxtil (entre 1760-1780), a invenção da máquina à vapor (1769) e as primeira aplicações industriais com a produção de ferro de boa qualidade (1780).
No campo social, a Revolução Industrial aos poucos criou uma massa de trabalhadores, muitos dos quais foram alfabetizados e escolarizados para atender às demandas industriais. São esses trabalhadores, tranformados em leitores, que transformaram as narrativas em prosa em um gênero comum entre as camadas populares, e por isso mesmo até então considerado menor diante da tradição épica. Conta-nos Antonio Candido que, quando o rei da Inglaterra quis dar a Walter Scott (escritor inglês que viveu entre 1771 e 1832) o título de baronete, houve dificuldade em encontrar a justificativa oficial de praxe, pois o motivo era obviamente a glória trazida pelos seus romances, mas estes saíam anônimos e o autor não quis aparecer como tal na cédula honorífica, por se tratar de atividade incompatível com as de um gentleman bem-posto. A solução foi alegar a sua qualidade de poeta, aceita tradicionalmente, pelo establishment; deste modo preservou-se o segredo de Polichinelo, e o romancista mais estrepitosamente famoso do tempo foi agraciado a pretexto de poemas da mocidade, que havia assinado e cuja autoria não o vexava..
O século seguinte, o XIX, não por acaso seria o século do romance, um gênero próprio da era Industrial, da era Burguesa, em detrimento às epopeias classicistas. É o século, além de Walter Scott, de Charles Dickens, Jane Austen, Stendhal, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Victor Hugo, Dostoievski, Lewis Carrol, Mark Twain, Julio Verne, nomes basilares no cânone ocidental, e Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio Azevedo, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, nomes fundamentais no cânone da língua portuguesa.
A produção do livro alcançou escala industrial, o público consumidor se fortaleceu, os gêneros populares, sobretudo o romance, se consolidaram e assim como havia ocorrido quando do surgimento dos tipos móveis, novamente a leitura passou a ser malvista tanto pelos detentores do poder quanto pelos pensadores, conforme sintetizou Schopenhauer em Parerga y paralipómena, de 1851:
(.) não se deve ler demais, para que o espírito não se acostume com a substituição e desaprenda a pensar, ou seja, para que ele não se acostume com trilhas já percorridas e para que o passo do pensamento alheio não provoque uma estranheza em relação ao nosso próprio modo de andar (.) Após essas considerações, não nos espantará o fato de aquele que pensa por si mesmo e o filósofo livresco serem facilmente reconhecíveis já pela maneira como expõem suas ideias. O primeiro, pela marca da seriedade, do caráter direto e da originalidade, pela autenticidade de todos os seus pensamentos e expressões; o segundo, em comparação, pelo fato de que tudo nele é de segunda mão. Trata-se de conceitos emprestados, de toda uma tralha reunida, material gasto e surrado, como a reprodução de uma reprodução. (2005, p. 48-49).
No campo da ficção, Flaubert, no clássico Madame Bovary, de 1857, criou uma protagonista que, seguindo a tradição de Quixote, deixa-se seduzir por más leituras e condiciona sua vida real de acordo com os mundos inventados da ficção. Devido à temática do livro, Flaubert chegou a ser levado aos tribunais, acusado de ofensa à moral e à religião, num processo contra o autor e também contra Laurent Pichat, diretor da revista Revue de Paris, onde a história foi publicada pela primeira vez, em episódios e com alguns pequenos cortes.
O surgimento da imprensa comercial, diária e popular, aliás, ao lado da escolarização obrigatória e consequente alfabetização em massa, tem papel fundamental na popularização do livro nessa época. O The Times, de Londres, é de 1785; o The Guardian, um dos jornais mais vendidos no Reino Unido até hoje, surge em 1821; o New York Sun, vendido a um centavo de dólar, é de 1833; no Brasil, o Correio Braziliense é de 1808, mesmo ano do lançamento da Gazeta do Rio de Janeiro, publicação oficial editada pela imprensa régia.
Com os jornais de massa, surgia um novo gênero literário, o conto moderno, que passou a ser tão malvisto como fora o romance no século anterior. Edgar Allan Poe, nos "Excertos da Marginalia", faz associação direta entre o progresso realizado em alguns anos pela imprensa e a afirmação do conto, dizendo que tal progresso não é uma decadência do gosto ou das letras americanas, como queriam alguns críticos, e sim um sinal dos tempos: "o primeiro indício de uma era em que se irá caminhar para o que é breve, condensado, bem digerido, e se irá abandonar a bagagem volumosa; é o advento do jornalismo e a decadência da dissertação".
Do ponto de vista dos livros, esta mecanização não chegou, num primeiro momento, a mudar sua técnica de impressão, que seguia seu formato de códice há cerca de mil anos, mas acelerou sobremaneira a produção, multiplicou o número de exemplares e de escritores, forjou o estudo da literatura e entregou para o século XX um objeto tradicional, capaz de suscitar medo e apreensão entre os poderosos, como bem representa Markus Zusak no romance A menina que roubava livros, sobre o período nazista, mas perfeitamente adaptado à lógica comercial e capitalista, com um sistema literário, como diria Candido, formado por autores, leitores e editores.
Neste século, o livro irá conviver com outras formas de arte e outros meios de comunicação de massa, como o cinema, o rádio e a televisão, que conquistam em pouco tempo enorme apelo popular e comercial. Nada, porém, muda a forma física do livro, até que com o surgimento da microinformática e da internet começam a surgir suportes digitais para a leitura em que não existe propriamente um objeto, e sim uma tela sobre a qual o texto eletrônico é lido, provocando uma uma revolução que Roger Chartier considera "com poucos precedentes tão violentos na longa história da cultura escrita".
Marcelo Spalding
Porto Alegre, 22/4/2011
Citação do dia :
A biblioteca é o templo do aprendizado, e o aprendizado libertou mais pessoas do que todas as guerras da história.
Carl Thomas Rowan